O espectro do fascismo, muito além das eleições de 2018


Muitos se perguntam, até hoje, por qual razão o fascismo teve tamanha adesão popular na Europa dos anos 30. Hoje, no Brasil, questiona-se ainda mais esse fenômeno sociológico por conta da opção de quase 30% do eleitorado nacional, conforme atestam pesquisas recentes, por um candidato que tem tantos pontos de alinhamento com a práxis daquele movimento extremista. Muitas correntes teóricas tentaram analisar precisamente essa aparente anomalia, mas há quase um consenso sobre as origens dessa convulsão sociopolítica que ressuscita sempre nos períodos de crise do capital global. 

Esse processo remonta, com as devidas correções políticas e históricas, ao golpe napoleônico. Napoleão Bonaparte entrou para os anais da história contemporânea como um herói, um sacro expoente do poderio francês. Ousado e cativante líder, o ex-imperador deixou à sua sombra figuras lendárias como Júlio Cesar e Alexandre Magno. De forma relativamente análoga, Adolf Hitler e Benito Mussolini fizeram seu próprio caminho de ascensão militar e popular, por vias mais rigorosas e com princípios étnico-culturais singulares, mas focados também na questão nacionalista, com o clamor de uma soberania cuja reivindicação se fazia necessária para colocar a pátria "nos eixos"(com o perdão do trocadilho à II Guerra Mundial). No mesmo país de Napoleão, mais recentemente, quase caíram de vez na graça do povo os membros do clã Le Pen, e aqui no Brasil tivemos o ressurgimento de um saudosismo pela Ditadura, centrado na figura de um ex-capitão da reserva, de discurso populista, descontraído e autoritário, rapidamente aclamado entre os revoltados sem causa e, principalmente, os jovens de classe média. 

A explicação mais fiel a todos esses quadros políticos similares, ainda que cada qual na sua devida época e local, está no esvaziamento de consciência sociopolítica de fatias expressivas da população, em dois campos principais. De um lado, uma parte muito representativa do povo, a parte da classe trabalhadora que sofre mais pesadamente com os desvarios econômicos e suas periclitantes consequências sociais e, de outro, alguns setores intermediários que possuíam um padrão de vida relativamente confortável antes dos estágios mais prolíficos da crise e se viram em quase ou real penúria após a conflagração dessa crise. Rapidamente, as elites, necessitando manter as rédeas sobre as instituições das quais derivam sua dominância política e se utilizando de seus aparatos midiático-manipulativos, acabam por lançar mão de uma culpabilização seletiva e terceirizada, que recai sobre os extratos sociais que lhe são indesejáveis e que podem ser facilmente hostilizados pelas massas. No caso de Napoleão, evidentemente que, conforme já foi sublinhado previamente, não se tratou de uma tentativa de colocar a culpa em grupos ou de exterminá-los, mas parte da narrativa é similar: centralizar as tentativas de "salvação nacional" numa figura peculiar, que se adiante como inovadora e capaz para tal incumbência e responsabilidade. 

Muito mais próximo do nazifascismo, nesse ponto, Jair Bolsonaro, que tem como principal referência nacional a ditadura empresarial-militar-midiática de 64, - a qual se ancorou também em outro referencial extremista, velado como pura democracia, que foi a perseguição aos comunistas deflagrada pelos EUA - rotineiramente se identifica com uma consolidada visão antiesquerda e anti-PT, principalmente. Para isso, deita sob a sombra do profundo sensacionalismo da mídia tradicional e das atitudes escandalosas de algumas de nossas instituições e de certas sucursais do grande capital, todos numa caçada às bruxas que, apesar de escancarada, apoia-se nos chamados princípios democráticos e, ao eleger seu alvo preferido, coloca-o como inimigo indireto e direto da própria democracia, dos bons costumes, da família, de Deus e de que mais o povo médio achar por bem defender com unhas e dentes, com uma gana psicótica.

A retórica misógina, homofóbica, fundamentalista e racista vem a reboque dos jargões classistas e de identificação política, baseados numa lógica que combina, de forma bem sucedida, uma visão conservadora e chauvinista sobre a pátria e os costumes nacionais com uma visão ultraliberal no campo econômico e social, algo empreendido por décadas no governo chileno, sob a batuta de Augusto Pinochet, um dos ídolos do candidato do PSL.

E é até curioso como alguns também se espantam que tal discurso se capilarize tão facilmente entre os pobres. Acham contraditório o tal "pobre de direita". Ora, aquele que está à margem de todo o processo social, que está privado do capital em todas as suas formas, inclusive na sua faceta cultural e pedagógica, embebeda-se com o chorume da ideologia dominante. A mesma ideologia que coloca no poder as velhas elites tradicionais da política, que derruba governos democraticamente eleitos, que submete exclusivamente o Estado e, no caso, apenas parte do Estado ao crivo da moralidade, endeusando o mercado e a parte do Estado que o representa e que por ele é representado, na mais perniciosa dialética institucional. 

O processo verdadeiramente democrático jaz moribundo, independentemente dos resultados eleitorais desse ano, já que, mesmo com eventual derrota do candidato da extrema-direita, uma preferência tão significativa do povo por sua forma de discurso e prática é uma aterrorizante ameaça ao nosso doloroso e recente processo de redemocratização. A preferência ardorosa ou, em um caso igualmente ruim, a completa conivência com uma candidatura tão profundamente reacionária, tão logo ela se mostre antagônica ao PT ou às esquerdas, coloca-nos diante de um desafio hercúleo para as próximas décadas. Não podemos crer, levianamente, que a derrota de Bolsonaro, possível e não tão improvável, no certame que se aproxima, esfacelará esse espectro fascista. O próprio candidato já deu seu recado, falando sobre a não aceitação de um resultado que não seja a sua eleição e a forma como ele vê, nas ruas, a impossibilidade de o povo também aceitar esse resultado. Quaisquer justificativas que ele use pra deslegitimar sua eventual derrota não tiram de cena o principal agente ativo da continuidade deste problema: o fato de que, mesmo que a direita em sua forma mais reacionária não suba ao Palácio do Planalto, uma tratativa imediata e rigorosa contra a ascensão dessa opção entre o eleitorado precisa ser tomada, ou ela se cristalizará como uma eterna opção, cada vez mais perigosa, aceita e popular. Um trabalho incansável e afirmativo, que passa pela educação e liderança do povo, especialmente da classe trabalhadora mas também dos setores mais racionais da classe intermediária relativamente culta, precisa ser consumado para que as próximas eleições não façam avizinhar cada vez mais o fantasma jamais descansado daqueles fatídicos anos de chumbo.

Comentários

  1. Excelente reflexão sobre um momento, não somente grave politicamente, mas no qual perigosamente as classes mais favorecidas flertam com o fascismo, sob a equivocada presunção de que serão capazes de dominar o Leviatã. Não serão. O abismo olha de volta e puxa para suas profundezas os tolos que não compreendem a verdadeira dimensão do real. O real não é, como se supõe de ordinário, o que se mostra, mas o que se oculta.

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    1. Perfeito, xará. Quando até parte substancial da esquerda só consegue visualizar o mundo das aparências e não apreende a essência dos fatos, que é o movimento da realidade, perdem-se num idealismo perigoso.

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