O peso irremediável da tradição




O conhecimento representa, a grosso modo, a luz e a treva da condição humana. A agridoce experimentação que travamos com o mundo à nossa volta tanto nos traz a indispensável base sem a qual não podemos nos humanizar, no sentido mais amplo da palavra, a qual também sobrecarrega nosso espírito com a imensidão de uma responsabilidade que essa evolução traz consigo. O poder irremediável do saber é o karma material de toda a civilização, um peso e um contrapeso em si mesmo, dando equilíbrio à nossa existência como ser social. O sujeito mais canhestro, notadamente inconsciente de sua própria ignorância, também desconhece os sabores ou, principalmente, os dissabores de sua humanidade e peso relativo à evolução da mesma, e a continuidade dessa ignorância é um valor preciosíssimo às classes dominantes. 

Todo ato nosso, por nossa própria natureza particular e exclusiva de seres sociais, carrega consigo uma significação real e objetivada. E assim, na construção dinâmica de nossa reprodução material, carregamos, para além de nossos atos particulares e aparentemente isolados em sua importância e articulação, uma verdadeira e, quase sempre, inconsciente e inconsequente objetivação social, posto que a sociedade não se divide de seus elementos humanos particulares e nem o ser humano, como singularidade, separa-se da sociedade. É oportuno lembrar que Marx, em uma de suas passagens mais célebres, constante da obra O 18 Brumário de Luis Bonaparte, argumenta que "A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens(…)". Não sei a vocês, mas a mim soa, para o bem e para o mal, muito familiar. 

A trajetória de nossos ancestrais não se desliga, nem que assim quisesse o ser humano, de seus próprios atos ou de suas próprias tradições contemporâneas. Jaz sobre as ruínas do mundo antigo toda a nossa significação atual. Repousa sobre tudo que achamos mais ultrapassado a base de existência daquilo que resguardamos como mais avançado e moderno. A história não é uma compilação linear de eventos dissociados e nem mesmo uma eterna progressão de atos positivos. Em lugar de uma abrupção no abismo, em que os elementos históricos se esvaem no esquecimento, cada passagem de nossas vidas, e aqui falo precisamente das vidas em conjunto e num lapso espaço-temporal significativo, rememora um passado bem constituído e também preenche, nas suas lacunas, todas as novidades que sobressaem de nossas constantes experiências. Esse movimento perene e nunca impossibilitado por qualquer ação que seja é, em sua maioria, dado de forma alheia a seus atores. Não que façamos as coisas sem propósito, mas somente a criteriosa análise social nos permite extrair a essência das aparências.

Sei que, até esse ponto, tudo parece muito abstrato. A muitos que lerão, soa como um apanhado de sínteses sem nexo com a realidade. Mas não é esse o intento nem a razão de ser do artigo, conforme seguiremos. 

Em cada pequeno, mas simbólico ato de rejeição a nossas tradições mais engessadas e inoportunas, deixamos um legado importantíssimo às gerações que sucederão a nossa. Não é otimista delimitar a realidade dessa forma, mas simples constatação do processo histórico. Não fossem sujeitos imensamente engajados tentarem, de todas as maneiras que lhes eram cabíveis, lutar contra, por exemplo, a opressão de seus patrões, que os submetiam a insalubres jornadas de trabalho, baixíssimos salários, ambientes laborais degradantes e outros detalhes que não cabe resumir aqui, teriam outras pessoas, em momento posterior da história, gozado de melhores condições do que essas? Teriam os patrões posteriores, em circunstância diversa, arrependido-se da forma como representavam seu papel social? Não trabalharemos com especulação e misticismo aqui, e sim com o que temos à disposição. Movimentos operários, em variáveis intensidades e em momentos históricos distintos, foram, gradativamente, pressionando a mudança desse padrão degradante. Até que essa mudança se deu. Essa eclosão não é mágica, é material. Ela se fez não por obra do acaso, mas da ação objetivada de sujeitos reais, em condições reais. 

Este é um simplório, mas pertinente exemplo histórico que podemos usar para entender o quão imensamente significativa é a responsabilidade que temos, socialmente falando - e no "mundo humano", nada deixa de ser social. Podemos adiar essa responsabilidade ad eternum, sem qualquer consequência imediata ou sensível a nós, ou nossas famílias, ou quaisquer outras pessoas com as quais nos relacionemos diretamente. Não é por outra razão que pessoas que viveram o período da Ditadura frequentemente digam "que ditadura que nada, não aconteceu nada comigo nem com a minha família!". Supostamente, ao mais reducionista e ignorante indivíduo, e há montes deles, a trivial experiência pessoal que têm, na medida absolutamente pessoal e isolada que ela representa, é dado suficiente para qualquer constatação. Ledo engano deles, já que, como mencionado, nenhuma experiência pode ser isolada. E a isso mesmo aplicamos a regra de que, mencionar a própria experiência e descaracterizar a totalidade das experiências é descaracterizar a história. 

O medo que frequentemente sentimos de fazer algo é fruto também dessa alienação perpétua da grandeza de nossos atos. A impensada dissociação que frequentemente fazemos de nossa própria existência em relação ao corpo social como um todo nos deixa num vácuo de inatividade. Não julgo nem menosprezo essa inconsciente insensatez. Eu mesmo sou frequentemente acometido desse impulso de inoperância. É tempo de pesarmos, porém, essa indiferença em relação a tudo que ela representa no jogo maior. A abstinência ao ato político mais concreto e ativo dá aos ativos jogadores um trunfo esmagador. O sujeito que se conforma ao status quo o legitima. 

Não nos deixemos, por conseguinte, rebaixar a uma condição que não nos é própria e que escapa à nossa realidade. A alguns, soa utópica a transformação social. Soa como um sonho inexequível a façanha da revolução, ou mesmo da simples quebra de alguns paradigmas. É a constante repetição dos "erros" passados e o fato de estarmos irremediavelmente empenhando os nossos atos em comparação ao que é feito pela maioria e o que foi feito quase sempre pelos que nos precederam que amordaça e coloca em grilhões nossa combatividade. Não há nada mais realista e plausível, porém, do que ingressar na luta. Não houve absolutamente nenhuma transformação na história que tenha emanado da inércia. 

Com o peso dessas palavras e o que elas representam, a priori, na ação concreta humana, repiso a tese de que nossas atitudes são o exemplo para o futuro. Da mesma forma que a ação leva às ideias, dialeticamente estas mesmas ideias levam à ação concreta. Enquanto não nos levantarmos frente às bandeiras conservadoras, não nos pusermos em marcha contra as tentativas(quase sempre inconscientes) de massas inteiras de tentar reformar o presente com os remendos mais anacrônicos de um passado morto e enterrado, não deixaremos outra coisa aos nossos descendentes se não um berço ideológico erguido sobre a lápide dos conceitos moribundos. 

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