As sombras por trás de uma gestão em colapso


Bolsonaro já superou nossa expectativa de ser um mero personagem. Personagens são frequentemente criados em períodos eleitorais, sendo então, muitas vezes, deslocados pela figura verdadeiramente política, que é, por si mesmo, também um personagem, mas o personagem protagonista e com os traços "ludo-eleitorais" menos aparentes. Não se trata apenas de uma caricatura impessoal e alinhada com os gracejos carismáticos "fora da caixa", mas a persona política de fato, investida de interesses reais e concretos. No caso do novo presidente brasileiro, isso simplesmente não aconteceu. Já se foram dois meses inteiros de mandato e mais um pouco, mas o ex-capitão da reserva se recusa a abandonar a figura adolescente e controversa que foi determinante para sua eleição. 

Uma das coisas que mais evidenciam essa sua indolência ou insignificância pessoal é a forma moralista com que ataca exemplos daquilo que reputa fora do padrão moral e comportamental aceitáveis, em todas as vezes que tenta, hipocritamente, balizar sua conduta sob os ditames da "família tradicional brasileira". Na sua conta oficial do Twitter, o presidente se utilizou de um episódio pontual, ocorrido num bloco carnavalesco de São Paulo, para ressaltar o que, para ele, seria evidência da falta de ética e boa conduta que impera no período festivo. Pessoas introjetando seus dedos no próprio ânus e praticando o chamado golden shower(o Google é seu amigo aqui, algo que o próprio Bolsonaro esqueceu, é bom lembrar), para sermos mais objetivos. É o tipo de rebuliço hedônico que acontece e sempre vai acontecer em festas desregradas, algo estatisticamente esperado e impossível de conter num país de proporções continentais. Não tem motivo pra causar tamanho alarde, muito menos da forma potencialmente ilegal como fez o presidente da República. E, claro, tal exemplo visa ser colocado como vitrine, para ser visualizado como uma evidência concreta de que todo o Carnaval é assim. Nem preciso dizer que isso, ademais, torna inócuos os episódios belos e construtivos de um evento como o Carnaval, que são muitos e demonstram o lado caloroso e aguerrido de um povo diverso e complexo. E nem é necessário salientar também o quanto é oportuno a Bolsonaro desmerecer a festa popular que, em diversos momentos, rechaçou sua figura, com gritos de protesto, fantasias de retaliação simbólica aos seus escândalos e infâmias e até mesmo enredos no desfile que retratavam um levante contra seus valores.

Este princípio de combate aos valores daquilo que o presidente considera imoral é mais perigoso do que aparenta. Afronta o método pelo qual se dá qualquer crítica séria e saudável, em que não se escolhem a dedos casos isolados e, sim, confirmam-se teses a partir de amostragem sólida e argumentos concretos. Não dá pra sinalizar um exemplo pontual como sendo prova irrefutável de algo, sob pena de, para não usarmos termos mais chulos, soar e portar-se de forma infantil, literalmente. E essa infantilidade é parte de uma conduta que pode ser frequentemente usada por aqueles que tentam, muitas vezes com sucesso, criar fenômenos de arrebanhamento ideológico, ludibriando grupos de pessoas deliberadamente, com intuitos escusos e maldosamente calculados

Estamos vivendo um momento em que isso se torna ainda mais relevante e trágico. Nos tempos de internet acessível e de informações pouco selecionadas e disseminadas a esmo, a viralização dessas exemplificações fajutas tende a criar movimentos, correntes de fanatismo. Criam-se oceanos a partir de gotículas de chorume cibernético e as pessoas se banham inconscientemente nessas águas insalubres. Dão vazão a um caldo desinformativo e o fazem com total legitimidade, já que tal modus operandi parte do primeiro escalão político. A figura folclórica de quem foi empossado no cargo primeiro do Executivo se torna uma pioneira numa pavorosa quebra de decoro presidencial, sob os augúrios nada animadores até mesmo da imprensa internacional e dos organismos políticos mais diversos. Nosso país se rebaixa à mais rasteira condição diplomática e nivela por baixo sua soberania nacional.

Trata-se aqui, portanto, de um problema que transcende o próprio espectro político e econômico, que já não era um mar de rosas nas gestão anteriores e tem sido, de forma quase homogênea em nossa história, algo particularmente espinhoso. Com apenas três meses não completos de mandato, o político do PSL se lambuza no que há de mais infame e reveste a política nacional com uma couraça de vergonha inaudita na nossa República ou em qualquer outra forma de governo anterior. Cria um precedente perigoso para tornar este "espírito de quinta série", também comum aos seus correligionários mais fervorosos, uma atitude presidencial passível de ser classificada sob o véu eufêmico da irreverência e da autenticidade. Não se tem o mínimo de noção ética fundamental, até para os padrões veladamente corrompidos de qualquer pseudo democracia típica dos Estados capitalistas. Digo isso, também, porque nem mesmo Donald Trump, no auge de suas insanas e até perigosas patuscadas, transita muito além das fronteiras do que já é esperado do mandatário de um país que manda e desmanda a bel prazer, sob o manto da democracia "do mundo livre". O Brasil, em sua condição subserviente clássica, sem a força política e econômica dos EUA, está ainda menos propenso a se portar de forma politicamente pueril, mas Bolsonaro não parece acreditar nisso ou sequer reconhece esse paradigma. 

Mas sabemos que, no fundo dessas papagaiadas indecorosas de um presidente, que despertam preocupação mas principalmente risos, há coisas bem mais sérias ocorrendo e a molecagem de Bolsonaro pode precipitar algo de muito mais perigoso. Talvez, por sua própria inépcia em governar com o mínimo de civilidade, ele pode dar o tiro pela culatra e se queimar de forma definitiva, de forma ainda pior do que se mostra por sua falta de tato ou decoro. O caso dos "laranjas", os laços políticos perigosos de seu clã, a forma como sorrateiramente vende o nosso país a preço de bananas, entre outros episódios obscuros na administração bolsonariana são uma bomba relógio cujo timer pode ser zerado, até inadvertidamente, pelo próprio Bolsonaro. E aí, então, não sabemos a extensão de espalhamento dos estilhaços.

Claro que as consequências ao próprio presidente são, por si só, substantivas, caso ele de fato não consiga reverter a implosão, mas toda a sociedade pode pagar caro mediante suas tramoias. O desequilíbrio das forças sociais, num país em que a classe trabalhadora se mostra frequentemente desmobilizada e sem rumo, não necessariamente dará pretexto para que ela finalmente se organize e vá à luta, de forma contundente e revolucionária. Pode simplesmente dar pretexto para colocação, em prática, de planos políticos antagônicos à vontade e necessidades do povo e alinhados com os interesses mais imediatos do capital. Com um eventual colapso do atual governo, as forças que tomarão o poder e procurarão reequilibrá-lo podem ser ainda piores e mais nefastas à grande maioria, e mais impactantes e sórdidas quanto mais baixo se vai dentro dos segmentos sociais.

É uma necessidade imperativa, portanto, utilizar-se da fragilidade do atual governo para colocá-la contra a parede e reivindicar a dignidade popular. Falanges do que há de mais pavoroso na sombria aliança entre forças públicas poderosas e frações influentes das classes dominantes costumam se colocar em marcha muito rapidamente e conter sua força pode ser quase impossível quanto mais se adiar o contragolpe.

Comentários

  1. Assino embaixo, Marcio.
    Estamos vivenciando tempos tão fora do normal, distanciados de tal ordem do nível civilizatório que críamos consolidado, que vez ou outra nos vemos forçados a torcer pela manutenção da precariedade, ante a periculosidade do imponderável porvir. É o caso, nesse momento, da defesa desse funesto STF, cuja péssima composição poderia ser exponenciada pelas indicações de Bolsonaro. Incrivelmente, torço para que os mandatos desses horrorosos ministros se sustente por mais alguns anos, coisa impensável para mim há pouco tempo.
    Mas, é isso.
    Grande análise.
    Parabéns.

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