200 Anos de Marx - Terceira Parte: O Legado


Muitos liberais ou conservadores de direita sustentam a tese de que Marx é obsoleto e irrelevante, pois suas teorias só se aplicavam - e isso quando admitem tal aplicação - ao século XIX, ao estágio de desenvolvimento econômico e político da Europa daquela época. O que parece, à primeira vista, uma zombaria na verdade se reveste de um temor justificável: de que a obra de Marx continua e continuará inspirando pessoas e movimentos, pois sua luta e seu projeto jamais perderam a relevância no mundo. Friedrich Engels, principal amigo e co-autor de Marx, assim "profetizou", frente ao túmulo de seu camarada, no dia em que este era velado: "O seu nome continuará a viver pelos séculos, e sua obra também!".

Fato é que o espírito marxiano foi um divisor de águas na história humana, trazendo consigo o arcabouço e a práxis do movimento de libertação da classe trabalhadora e, por conseguinte, de toda a humanidade. Diferentemente dos apaixonados e aventureiros que se arriscam à política como que abraçando o mundo com suas mãos, porém, Marx e sua teoria social eram profundamente materialistas e não conjecturavam a realização de uma utopia, mas, através de estudo crítico e analítico de uma sociedade ainda em construção, já colocava à disposição do conhecimento humano o caminho que poderia ser traçado pelo homem a fim de dissolver, no momento oportuno, o conflito histórico e indelével entre classes, que foi o motor de desenvolvimento de nossa civilização e seu fim haveria de ser, para que a humanidade caminhe além do que se apresenta hoje, também o motor de desenvolvimento desta próxima etapa, sua condição primordial de evolução. 

O maior legado de Marx, portanto, sintetiza-se pela conquista de uma consciência social inaudita, que rompe com o pensamento idealista dos revolucionários de outrora, que os fazia criar uma nova forma de sociedade e sociabilidade que, apesar de diferente da anterior, fazia permanecer a disputa entre os elos da sociedade, entre o opressor e o oprimido, entre o privilegiado e o despossuído. E este legado não somente se traduziu em um conjunto inestimável de obras, que abrangem parte substancial do conhecimento humano, mas também pela construção de mobilizações inéditas na história, que definitivamente transformaram a face do globo. E é centrado nessas transformações e no que Marx representa para o mundo de hoje que redijo o último de 3 artigos homenageando o bicentenário do maior pensador dos últimos séculos. 

MARX E SEUS ALGOZES - ANTES E DEPOIS

Como também bem disse Engels no discurso que proferiu ao funeral de Marx, este fora um homem profundamente odiado pelas classes privilegiadas da Europa. Desde que demonstrara sua faceta mais subversiva com a publicação de ácidas críticas ao senhorio prussiano na Gazeta Renana, Karl Marx iniciou uma contenda difícil de vencer contra as forças mais reacionárias em vigência, na Europa. Foi, por obra disso, constantemente exilado, sendo primeiro expulso de seu país natal, depois da França e então da Bélgica, após o que se instalou, até o fim de seus dias, na capital britânica. 

Mas, mesmo no campo progressista, as ideias de Marx foram soberbamente transgressoras. Não havia um só campo da filosofia moderna ou da economia política que Marx não criticou e poucas das lideranças de esquerda de seu tempo passaram incólumes à ávida crítica que direcionava a tudo e todos que considerava alinhados com o idealismo ou com o conservadorismo, mesmo que de forma inadvertida. Não que ele tentasse angariar para si inimigos, tanto quanto não pretendia montar um exército de admiradores. Porém, Marx compreendia a importância de sua atividade como pensador, que era essencial transformar, e a transformação requer ação e conflito, no bom sentido. 

Não foi antes de algumas décadas após sua morte, contudo, que Marx teve atribuído a seu nome tanto escárnio. Num primeiro momento, até mesmo os rivais mais confessos de Marx lhe prestavam o devido respeito, ficando o ódio ao seu pensamento restrito às classes dominantes. Após, no entanto, as diversas convulsões políticas originadas de partidos ou agremiações ditas marxistas, em especial a Revolução de Outubro na Rússia, o legado de Marx passou, em definitivo, a integrar o campo da ação, envolvendo milhões. As importantes mudanças sociopolíticas originadas dessas revoluções, que chegaram a dividir o globo em duas facções durante mais de 40 anos, não poderiam deixar ilesa a figura daquele que teria sido o grande mentor, ainda que póstumo, dos principais líderes revolucionários do século XX. 

A massiva propaganda e política beligerante do eixo capitalista na Guerra Fria, liderada pelos EUA, promoveu uma profunda adversidade ao pensamento e política marxistas, traduzidos nos sistemas ditos socialista que foram empregados pela URSS e por outros países que seguiram seus passos e declararam guerra ao patronato. Por todos os continentes habitados, fazia-se sentir o tal espectro que Marx dizia, décadas antes, assombrar a Europa.

O grande problema é que, como Marx possivelmente poderia prever ainda em vida, haja visto os seguidores que já possuía à época, muitos daqueles que viriam a tentar seguir seus passos não poderiam estar mais distantes da concretização de qualquer projeto de superação do capital ou de compreender as contradições imanentes desse. Acho inoportuno tentar rotular as experiências socialistas como tentativas fracassadas ou de classificar seus líderes como burocratas oportunistas ou sanguinários aventureiros. Na pior das hipóteses, eram homens de seu tempo e contexto, como Marx fora antes, capazes tão somente do que suas limitadas condições materiais poderiam prover. Claro que decisões erradas foram tomadas, algumas delas se provando fatais, mas a forte aliança dos países capitalistas, em conjunção a uma pesada propaganda contrarrevolucionária, mostraram-se difíceis de aplacar. A ordem do capital dificilmente será subvertida sem uma união muito mais expressiva das forças proletárias internacionais, uma necessidade frequentemente aludida por Marx em suas obras, pelo menos desde o Manifesto Comunista.

Fato é que, tendo sido o mentor de tantos dos revolucionários conhecidos do mundo, mesmo que suas interpretações tenham sido muito peculiares, foi assim que Marx ressurgiu para a história como um sanguinário e genocida. Sim, pois as ações daqueles que carregaram a bandeira do marxismo tornaram-se as suas próprias, sua influência se transcreveu como uma semente da discórdia. E isso nem se deve tanto a verdadeiras atitudes dos ditos líderes das revoluções. Como dito antes, erros foram cometidos, mas foi a potente máquina de propaganda do ocidente capitalista que trouxe à tona essa demonização do marxismo, sua redução de grande ciência humana a panfletagem de todo o mal e a escória. 

Um momento, em particular, onde isso se mostrou ferrenho foi no período de início da II Guerra Mundial. Ao contrário do que muitos liberais mal instruídos vociferam por aí, Hitler não era um socialista, mas sim um grande inimigo  de toda a esquerda, em especial a marxista. Seu livro Mein Kampf evidencia isso, seus discursos também. Um homem que hoje não tem seu nome muito levantado em discussões mas que tinha uma reputação muito notória no período em que Hitler subiu ao poder arquitetava, do outro lado do oceano, uma maneira suja de conspurcar a URSS em construção: William Randolph Hearst, o maior magnata norte-americano das comunicações. Dono de 3/4 do conglomerado midiático dos EUA, Hearst se aproveitou de sua influência e alcance para forjar matérias que apontavam um genocídio muito cruel ocorrendo na Ucrânia. Mais precisamente, milhares ou até milhões morrendo de inanição pelas mãos do governo soviético, pelas mão de Stalin. Um dos primeiros a propiciar a caçada às bruxas contra Stalin, que o colocou como alguém que fazia Hitler soar bonzinho, foi Hearst, portanto. As fotos, comentários e relatos foram copiosamente refutadas por outros jornalistas na época e até por outros depois*, mas o estrago estava feito. Poucos deram real atenção ao fato naquele tempo, mas com o passar do tempo e o início da Guerra Fria, Hearst foi ressuscitado em sua jornada anticomunista por outros anticomunistas, especialmente nos tempos de Reagan e a cruzada neoliberal. Gente como Robert Conquest e Robert Service lançaram livros denunciando as supostas centenas de milhões de mortos dos regimes comunistas. Implodia a contrapropaganda massiva e o colapso da URSS não ajudou em nada a minar os efeitos dessa lavagem cerebral.

De homem respeitado e admirado por seus feitos notáveis e por sua inteligência e articulação, Marx foi sendo colocado de lado como um embuste desordeiro por conta dos discípulos que teve e que foram escorraçados pela mídia e pelo governo dos principais países do eixo capitalista. Os algozes de Marx, de seu tempo em vida, não se equiparavam aos que teria no postmortem

OS MARXISTAS: CISÃO, INTERPRETAÇÃO E DETURPAÇÃO

O que mais importa: ter seguidores fieis ou quem interprete fielmente seu trabalho? Para os gurus religiosos mais desonestos, certamente a primeira coisa, mas para homens como Marx, nenhum dos dois. Já nas suas duas últimas décadas de vida, ele colecionava alguns admiradores e, dado o espírito aventureiro e politicamente imaturo de alguns, não davam a Marx bons auspícios do que se tornaria o movimento em torno de sua obra. Numa carta endereçada a Conrad Schmidt, Engels cita uma frase atribuída a Marx: "Tudo que sei é que não sou marxista", sendo o contexto uma referência aos marxistas surgidos na França. Não nos esqueçamos de que Marx era um poderoso intérprete dos acontecimentos políticos à sua volta. O que surgiria à vista de um crédulo ingênuo como boa intenção, aos olhos dele certamente se desnudava como rasa e até imprudente manipulação dos fatos. 

Isso era uma realidade prevalente durante o século XIX, mas não se dissipou com o século XX. Poucos foram os socialistas que não se desviaram ao caminho do grosseiro reformismo, um embrião do que seria a social democracia moderna, termos este que já foi utilizado, nos primeiros anos, para designar os próprios partidos de tese comunista. Neles, operou-se uma cisão entre os partidaristas de uma doutrina mais à esquerda, mais baseada no marxismo ortodoxo e aqueles que eram partidários de um marxismo vulgar, alinhado a uma espécie de conciliação de classes e uma ojeriza idealista à chamada ditadura do proletariado. Não faço desse texto, apesar do termo "grosseiro", uma apologia ao alcunhado socialismo real, mas tampouco tenho em boa conta a infeliz associação do que fora redigido por Marx, formalmente, com algo que se assemelhe ao mais vergonhoso retrocesso às práticas antiquadas. Não seria novidade no seio da luta social: lembremo-nos da dança das cadeiras ocorrida no interior da Revolução Francesa, que foi transformando, ciclicamente, o ímpeto revolucionário em ímpeto contrarrevolucionário. Foi fazendo uma espécie de antifeudalismo e anti-imperialismo se curvar a um sentimento nacionalista chauvinista, com ares de um monarquismo enrustido, que enfim se tornou monarquismo declarado, com a ascensão de Napoleão Bonaparte ao cargo de imperador. 

No que tange a Marx, especificamente, o aparelho burocrático e vulgarizador que se instalou na URSS, por exemplo, é perfeito exemplo disso. Eu não sou um crítico mordaz de Stalin, como muitos da esquerda, por práticas que ele não cometeu de verdade ou que não eram formalmente de sua autoria. Como já dito acima, muitas mentiras foram imputadas ao seu governo. Sou um crítico, no entanto, à maneira rasa com que Stalin interpretou a obra de Marx, sob um prisma de escancarado idealismo e misticismo, muito distintos da interpretação bem mais racional e acurada de Lenin. Com isso, com esta teoria pseudomarxista, lançou-se mão de uma prática igualmente deletéria, em que o profundo aparelhamento estatal não poderia ser mais distante da operação de desmantelamento contínuo do Estado previsto por Marx - e que o próprio Lenin repisou consistentemente em O Estado e a Revolução, sua obra mais célebre. Esse tipo de prática, a bem de verdade, acabou por dar ao comunismo esse viés "estatista" absolutamente contraditório com a teoria verdadeiramente comunista. A destruição do Estado, aparelho político-jurídico de manutenção da submissão de uma classe pela outra, era uma força motriz da transformação social delineada em Marx. O fim do capital não se dá sem o fim do Estado e, por consequência deste e de outros processos, o fim das classes sociais. Longe de mim fazer aqui as críticas de teor destrutivo da direita contra as chamadas experiências socialistas e que, em medida mais sórdida, foram adotadas também por parte substancial da esquerda. As ressalvas que lhes cabem, e que farei em outro artigo, nada têm a ver com esse tom difamatório e, às vezes inadvertidamente, pró-imperialista. No entanto, seu "carma" negativo também se amalgamou à figura de Marx e pelos piores motivos, com consequências violentas para a imagem do alemão.

Ainda assim, nem tudo são espinhos. Os marxistas, ou os porta-vozes do marxismo, não foram ou não são apenas aqueles que adquiriram poderes de Estado ou participaram ativamente em revoluções. O socialismo científico, por ser uma ciência, abriu rumo a uma imensidão de campos de estudo, dentro da sociologia, da economia, da filosofia, até mesmo do direito. A gama infindável de astutos pensadores, das mais distintas correntes e aproximações à obra marxiana, formam um braço imensamente capilarizado do conhecimento moderno e demonstram que, além da sua contribuição imensurável à formação política - comprovada pela disseminação de diversos partidos comunistas por todos os continentes - o marxismo também é reduto inegável das ciências humanas contemporâneas, importante ferramenta à análise social, política e econômica de nossos dias. Por pior que seja a fama de Marx frente ao senso comum, toda grande universidade e recinto acadêmico têm sua ala de pesquisadores marxistas e a ciência fundada por Marx e Engels verte frutos diariamente, mesmo depois de mais de um século e meio. 

*O canadense Douglas Tottle publicou, em 1987, um livro chamado Fraud, Famine and Fascism: The Ukrainian Genocide Myth from Hitler to Harvard, em que discorre, com evidências documentais e fotográficas, sobre o chamado Holodomor, suposto genocídio por inanição à população ucraniana na década de 30, uma farsa jornalística criada por William Randolph Hearst e com co-participação dos nazistas e que, apesar de ter sido pouco considerado à época, foi ressuscitado como contra-propaganda pelos norte-americanos, durante a Guerra Fria. 

MARX É OBSOLETO? O QUE NOS DIZ O SÉCULO XXI

Há duas correntes distintas, as quais considero ambas equivocadas, a respeito da obra de Marx: uma diz que é obsoleta, que nada tem a contribuir para o pensamento moderno ou à crítica da sociedade atual; a outra diz que a obra de Marx tem serventia se modernizada, repaginada. Considero, diferentemente, que o trabalho de Marx terá validade enquanto o capitalismo perdurar. Afinal, muito embora a ordem do capital passe por constante renovação e, assim, balize as diretrizes através das quais persiste no tempo e espaço, suas características fundamentais são as mesmas vistas por Marx há pelo menos um século e meio. Algumas das principais "previsões" feitas pelo teórico alemão são mais facilmente vistas hoje do que naquele tempo, quando algumas das características mais notáveis do mundo capitalista ainda estavam em fase de amadurecimento e expansão, sendo vistas quase que somente na Europa ocidental. 

Vejamos alguns dos pontos tocados por Marx e que aludem ao mundo contemporâneo:

A luta de classes - Que tal o 1% mais rico da população global ficando com mais de 80% do dinheiro global? O nosso Congresso, cheio de latifundiários e empresários? Empresas como a Amazon, cujo CEO é o homem mais rico do planeta por larga vantagem, mas que tem muitos funcionários ganhando um salário de fome? Tudo isso denuncia, sem abstrações e da forma mais prática e sucinta possível, a irreconciliável diferença entre as classes sociais. 

A crise do capital - As crises de 29, a crise do petróleo de 73, a  grande crise de 2008 e todas as outras pequenas crises cíclicas do mercado financeiro, imobiliário, energético, etc. Alguns utilizam a tese de que as crises são culpa do Estado, não do mercado, essa fantasmagórica entidade autossustentável. Mesmo que isso fosse inteiramente verdadeiro, vai de encontro à tese de Marx, centrada na já mencionada luta de classes, de que o Estado nada mais é do que um mecanismo acessório ao capitalismo, utilizado para comandar as massas e auxiliar na saúde dos negócios, além de divisar, no plano político, o abismo pré existente entre os grupos sociais. 

O monopólio empresarial - Em total dissonância com os economistas políticos clássicos, de cuja fonte Marx bebeu muito, este costumava dizer que o capitalismo tende, em última instância, ao monopólio dos grandes capitalistas, com as maiores empresas se fundindo. Smith et al, os preconizadores do liberalismo econômico, eram bastante otimistas quanto à "mão invisível do mercado" e à autorregulação do mesmo. Marx, porém, acreditava que a tendência era que grandes empresas esmagassem a concorrência, eventualmente. Vemos exemplos disso ocorrerem diuturnamente, hoje mais do que nunca. Basta ver grandes conglomerados do entretenimento, como a Disney, ou imensas corporações da tecnologia, como a Google e o Facebook, que compram outros negócios - e não quaisquer negócios, mas valiosos empreendimentos bilionários - e aglutinam seus produtos à sua escala de produção e lucro. Muito dinheiro é despendido para essas aquisições, mas muito mais dinheiro é providos em receitas, demonstrando que, a despeito do impulso ocasionado pela concorrência, o espírito predatório do capitalismo não permite e nem precisa permanecer sob uma supostamente saudável competição entre os grandes negócios. 

Os salários baixos e o exército industrial de reserva - Sabemos que a sociedade atual não mais possui, de forma tão universal e escancarada, a insalubre e desumana condição geral do trabalho, com crianças, mulheres e homens passando por jornadas extenuantes, de quase 20 horas diárias, em fábricas com condições laborais das piores possíveis e salários achatados ao extremo, suficientes tão somente para a mais miserável existência do proletário e sua família. Mas até que ponto isso mudou? 
Através das políticas essencialmente de esquerda, com sindicatos combativos e greves massivas, muitos trabalhadores passaram a gozar de direitos inestimáveis e passaram a ter um padrão de vida superior ao de outrora, especialmente nos países do dito Primeiro Mundo, mas as empresas, especialmente as multinacionais do mais alto porte, sempre procuraram e continuam a procurar mão de obra barata e desesperada por qualquer tipo de trabalho, até o mais penoso e ingrato. O abismo social e econômico que existe entre países como os EUA e os menos desenvolvidos da África e das Américas, por exemplo, não é mero acaso ou, muito menos, existe a partir do que desonestos chamam de incompetência natural: a política imperialista empreendida pelos estadunidenses e pelos europeus ocidentais dá frutos principalmente com esse abismo, possibilitando uma espécie de novo colonialismo, onde um numeroso exército de reserva, ou seja, o excedente da classe trabalhadora desempregada permanece à disposição. 

A sociedade de consumo - "A extensão de produtos e necessidades torna-se uma espécie de servidão calculada e conivente para sofisticados apetites imaginários, desumanos e antinaturais". Assim disse Marx e, assim, décadas antes da construção da propaganda capitalista e de uma sociedade plenamente alinhada ao consumo, concebeu a imagem de um mundo alienado pelos produtos do capitalismo. De forma análoga, ao cunhar o chamado fetichismo da mercadoria, um de seus conceitos mais revolucionários, Marx nos mostrou a maneira pela qual mercadorias, que são produtos do trabalho, tornam-se eles próprios entidades fantasmagóricas, com um chamado valor de troca que, dentro da sociedade e em meio às transações mercantis, aparenta ser o valor intrínseco do objeto, que agora é mercadoria, como se as características que ele adquire no mercado, no meio social, fossem suas características próprias e imanentes.

A globalização - Quem estuda história de forma séria não poderia achar mais incerto o conceito de que vivemos uma inédita era da "globalização". A globalização começou lá atrás, talvez com as Grandes Navegações, e persistiu ao longo dos séculos, consumando-se, por fim, com a modernização do capitalismo e, mais recentemente, iniciou-se um processo de nova globalização, com o advento da Internet, a modernização dos transportes de massa e a melhoria na infra-estrutura de boa parte das cidades modernas. Marx e Engels já haviam sublinhado essa característica mundializante do capitalismo no Manifesto Comunista, quando citaram a necessidade que a burguesia tem de invadir o mundo todo e cada lacuna possível da sociedade. Nesta mesma esteira, Marx também fala consistentemente sobre a mercantilização das relações humanas,que é amplamente disseminado com a viabilização de um grande processo de expansão dos transportes e dos meios de comunicação.

Há diversas outras situações contemporâneas que revelam que, para além das aparências superficiais, o capitalismo não se alterou em seu núcleo. Seus mecanismos e contradições são parte, portanto, de sua própria existência e coesão. Seus assim chamados problemas são, portanto, não exatamente problemas mas válvulas de funcionamento. Dizer que o capitalismo deu certo ou deu errado é leviano: uma forma de sociabilidade - termo mais correto do que "sistema" ou "modo de produção" - não tem modo certo ou errado de funcionar, tem apenas o modo de funcionar puro e simples. Se ele prejudica alguns e beneficia outros, trata-se de mudança de perspectiva. Do ponto de vista do empresário, decerto o capitalismo é a melhor forma de sociedade que já existiu...

Mais do que nos traçar uma fantasiosa fórmula de transição ao comunismo ou tentar imaginar uma sociedade utópica como os socialistas anteriores, Marx teve como principal contribuição às ciências humanas o advento de um estudo aprofundado do capitalismo, de sua formação ao seu funcionamento, indo além do que os economistas políticos e filósofos de sua geração e precedentes haviam concebido. Diferentemente do que pensam os detratores mais puristas de sua obra, que nunca a devem ter lido ou compreendido, seus textos estão entre as mais extensivas fontes de consulta e estudo sobre o mundo em que vivemos, para que possamos compreender, para além da ideologia e da simples fraseologia, de que maneira nossa sociedade se constitui e de que maneira nós somos os únicos verdadeiramente capazes de moldar e construir uma nova sociedade, emancipada dos invisíveis grilhões e mordaças que alijam a classe trabalhadora.  

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