200 Anos de Marx: Segunda Parte - A Obra


Marx foi, de fato, um importante e ativo revolucionário durante boa parte de sua vida. Seu trabalho literário, de suma importância pedagógica ao movimento operário, era aliado a uma indispensável participação nos comitês e partidos, para não mencionar a própria Associação Internacional dos Trabalhadores. No entanto, a obra marxiana, sejam as publicações de autoria única de Marx ou as diversas que redigiu em co-autoria com Friedrich Engels, não eram meros panfletos de ativismo. Mesmo alguns dos que foram publicados principalmente com esse fim, como o notório O Manifesto Comunista, carregam em si uma construção teórica inovadora e necessária, especialmente no auge da 2ª Revolução Industrial. A ideia de Marx nunca foi a de ensinar a classe trabalhadora os caminhos rumo ao socialismo, visto que ele não acreditava na ação política dos homens como sendo algo previamente escrito. Não havia uma receita de bolo em Marx, e sim um aparato crítico e analítico sobre o mundo em volta, sobre a maneira como, de maneira inexorável, os homens construíam o seu destino não de forma arbitrária, mas carregando consigo todo o peso do passado e fazendo muitas coisas sem se dar conta de fazê-lo.

Assim que, de maneira muito mais sensata, precisamos pensar a obra do alemão como um indispensável compêndio da história humana, em suas mais diversas facetas, passando por questões de ordem filosófica, epistemológica, econômica, política, natural. E não se trata de uma simples filosofia de boteco, sem ação, sem atitude. Não era uma simples descrição historiográfica, mas também metodológica, empírica, científica e que, como tal, entendia que o mundo muda e avança sempre numa direção materialmente ligada ao que ocorreu antes e o que ocorre durante cada evento. O caráter muitas vezes dogmático adotado pelos discípulos de Marx, especialmente aqueles que se utilizaram de sua influência e espírito para inflamar as grandes revoluções do século XX, certamente desagradaria ao mestre destes sujeitos. Antes de morrer, Marx já contava com inúmeros seguidores, via a maneira como agiam e interpretavam o mundo e, por obra disso, chegou a dizer que "tudo que sei é que não sou marxista". A simplicidade e transparência com que Marx enxergava o mundo à sua volta deve ser adotada, de maneira franca, por aqueles que pretendem compreendê-lo e, assim, não cometerem o erro comum de estigmatizar tanto trabalho despendido como sendo fruto de uma rebeldia sem causa ou de delírios de um sujeito extravagante. 

Alguns pontos elucidativos, ainda que superficiais, podem ser tecidos a respeito do desenvolvimento da obra marxiana:

I - Marx era profundamente crítico e boa parte, se não toda a sua obra, pode ser encarada como crítica a outros autores e abordagens, da forma como haviam se desenvolvido até ali, inclusive críticas direcionadas a teóricos que foram seus contemporâneos e com os quais Marx chegou a conviver e dialogar. Isso é importante para compreender o desenvolvimento do pensamento marxiano na medida em que enxergamos a forma como Marx tentava interagir com o mundo à sua volta e seu funcionamento na prática, e não a partir de uma contemplação estática e sem propósito. A motivação central, o eixo gravitacional do trabalho de Marx estava justamente em desmistificar o idealismo e o conservadorismo nas suas mais diversas formas, em compreender os intrincados mecanismos da sociedade capitalista e fazê-lo, principalmente, ressignificando aquilo que já fora exposto por filósofos e pensadores anteriores, como os economistas políticos do século XVIII, os filósofos alemães e franceses do mesmo período, os teóricos anarquistas do século XIX, etc.

II - O materialismo histórico é o ponto chave da obra marxiana, o reduto no qual se constitui boa parte de seu pensamento e práxis. Marx entendia o mundo humano, tal como a própria natureza, como consequência das relações materiais e entendia que a própria história se fiava a partir da ação humana, não de uma maneira tendenciosa ou algum tipo de destino, que seria um misticismo idealista comumente imaginado nas religiões ou seitas filosóficas dogmáticas, mas através da perpétua transformação originada de cada ação, de cada processo social. Os idealistas, como o próprio nome sugere, costumavam/costumam pensar que o mundo das ideias, superior e puro, dá origem ao grosseiro mundo material e, assim, que as ideias dão origem à matéria e ao que é material. Marx, como materialista, via que as próprias ações colocadas em prática, de forma SOCIAL, traduziam-se nas ideias, nos conceitos, na cultura, na religião, na política, etc. Essa concepção levou à tese de que os diferentes modos de produção(i.e o capitalismo) tem preceitos que influenciam diretamente na cultura, na religião, na diplomacia, na política, etc. A economia, a produção, a divisão e a dinâmica de trabalho, a divisão e a luta de classes influenciavam nesses aspectos e estes, através de um retorno DIALÉTICO, influenciavam aqueles, como uma rede complexa de fatores mutuamente conectados. 

III - É interessante observar, cronologicamente, aquilo que Marx produziu ao longo dos anos não apenas a título de curiosidade, mas como forma de compreender sua ligação efetiva com o contexto e época em que viveu. O pensador alemão reconhecia na filosofia e na escrita um ofício de transformação, atento à sua época e ao rumo da história, de forma que cada novo livro publicado, cada rascunho, cada pauta levantada tinham a ver com as coisas que o instigavam e com aquilo que ele absorvia da situação lá fora. Um exemplo factual disso é a introdução esclarecedora feita por ele e Engels a uma edição de O Manifesto Comunista publicada posteriormente à Comuna de Paris. Como este evento e a primeira edição do referido livro são separados por um intervalo de 23 anos, não apenas os acontecimentos da revolta mas a grande carga de conhecimento adquirida por Marx fez com que ele revisitasse e reinterpretasse parte do que havia escrito de maneira autocrítica e totalmente pensante, um esforço teórico que demonstrava sua simplicidade e transparência

IV - Marx era "eclético". Na verdade, um dos principais problemas dos discípulos de Marx está na maneira como interpretam sua obra pobremente, de forma precipitada, provavelmente pelo apego a ideias antiquadas e metodologias incompatíveis com o materialismo histórico. Muitos o banalizam como um economista, por exemplo, e alguns de seus algozes o culpam de ser economicista. Para Marx, a economia de uma sociedade certamente é uma base de sustentação para boa parte de seu funcionamento e características imanentes, mas é leviano atribuir à sua escrita uma predominância do estudo econômico ou mesmo uma predileção, um favorecimento. Há muita filosofia e ciência política em Marx. Há matemática, ciências da natureza, análises antropológicas. O campo vasto de pensadores marxistas, que vai da própria economia à biologia, demonstra isso. Marx era, antes de tudo, um revolucionário, um ativista e um teórico muito curioso e empenhado. Sua obra não se limita a um único campo, ela é uma totalidade vasta e com a qual não casa essa tosca relativização.  

O presente texto, a segunda parte da homenagem ao bicentenário de Marx, não tem a pretensão de escrutinar com perfeição uma obra que atravessou mais de quatro décadas e tem um grau de complexidade soberbo. Na verdade, o mais importante é ler Marx, não tentar entendê-lo por terceiros. Portanto, a primeira dica para conhecer seus trabalhos e parar, inclusive, de conceber ideias distorcidas sobre eles é literalmente LER. Porém, já que a intenção aqui é tentar trazer um pouco de luz a respeito de uma bibliografia tão vasta, até para fomentar a iniciativa dos que ainda não conheceram Marx através de sua produção escrita, trarei aqui sucintos comentários sobre algumas de suas principais obras, além de trazer uma espécie de guia, muito pessoal, de como começar e continuar a ler o velho alemão. Farei isso de forma cronológica, por mera didática.

CRÍTICA DA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL(Karl Marx)


O primeiro grande trabalho de Marx que rompe com sua faceta mais idealista, ligada ao hegelianismo com o qual se associou tão grandemente na juventude. Com apenas 25 anos, Marx já dava os primeiros passos da construção de sua teoria social ao criticar, entre outras coisas, o grande mérito que o filósofo alemão dava ao Estado, em detrimento da sociedade. Marx via na sociedade e em sua história e desenvolvimento os verdadeiros motores da humanidade, o que se explicita no conceito de luta de classes. Apesar de o contorno crítico se dar com inspiração mais feuerbachiana(baseado em Feuerbach, filósofo alemão de quem Marx extraiu parte de suas concepções materialistas), a assinatura mais autoral que lhe seria característica já transpira nas suas anotações e comentários aos escritos de Hegel.


OS MANUSCRITOS ECONÔMICO-FILOSÓFICOS DE 1844(Karl Marx)



Duas décadas antes de publicar o primeiro volume de O Capital, Marx, ainda jovem e se desprendendo de algumas das concepções que criticaria enfaticamente na posteridade, já havia se debruçado sobre importantes questões ligadas ao trabalho e o funcionamento do capitalismo, do dinheiro e da produção.

Apesar de muitos, inclusive marxistas, desdenharem desta obra por se tratar de um apanhado de rascunhos, a importância teórica da mesma é indubitável. Aqui o conceito de alienação, por exemplo, de suma necessidade à compreensão de Marx, revela-se pela primeira vez de forma concreta em sua escrita. 




TESES SOBRE FEUERBACH(Karl Marx)


No ano de 1845, Marx e Engels também lançaram seu primeiro trabalho conjunto, A Sagrada Família, que criticava de forma ácida e contundente os chamados jovens hegelianos. No entanto, em termos de importância teórica, talvez seja ainda mais necessário destacar esse pequeno texto de autoria de Marx, em que, através de 11 teses, que miram mais especificamente na filosofia feuerbachiana, o autor se dirige também à filosofia e à sociedade humana como um todo. A décima primeira tese é a mais famosa, por ajuizar uma quebra de paradigmas essencial frente à filosofia: "Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo"





A IDEOLOGIA ALEMÃ(Karl Marx e Friedrich Engels)



Dos trabalhos mais voltados à filosofia de Marx e Engels, esse é o mais notório e um dos mais completos. Muito embora os conceitos abordados nesse tomo tenham se cristalizado de forma mais madura em outros trabalhos, inclusive alguns publicados bem antes deste, se A Ideologia Alemã tivesse sido trazido à luz antes de 1932, talvez o próprio conhecimento dos estudiosos de Marx precedentes a esse período teria sido mais completo e seu arcabouço revolucionário mais robusto. Ainda assim, talvez a intenção de Marx nunca tenha sido a de publicar essa obra, de fato, já que se trata de um volume de rascunhos sobre os mais diversos temas e, por muito tempo, a publicação se restringiu ao primeiro capítulo, que contém a mais completa crítica dos autores sobre a filosofia feuerbachiana. Os demais são dedicados a diferentes pensadores da escola hegeliana, como Max Stirner e Bruno Bauer. No Brasil, algumas edições, como a da Boitempo, apesar de mais completa, torna-se uma leitura confusa e modorrenta, mas algumas outras, mais econômicas e bem diagramadas, permitem ao leitor o entendimento geral de conceitos de suma importância, como o próprio materialismo histórico.



MISÉRIA DA FILOSOFIA(Karl Marx)


A começar pelo título, esse trabalho de Marx é uma resposta frontal e completa ao livro Filosofia da Miséria, escrito por Pierre-Joseph Proudhon, famoso anarquista que, à época da chegada de Marx na França, já era notório nos círculos da luta operária. A despeito de uma aproximação inicial, as dissidências de Marx e Proudhon eram claras quanto às suas formulações teóricas e esse abismo se viu claro a partir dessa resposta de Marx, que ocasionou a ruptura completa entre os pensadores. 
Trata-se de um dos primeiros trabalhos de crítica a teses econômicas, em que Marx resgata diversos pensadores clássicos e traz suas manifestações autorais para criticar acidamente o pensamento econômico de Proudhon, que Marx, em mais de uma ocasião no livro e em outras instâncias disse ser pequeno-burguês, alinhado a uma tese mais liberal e idealista do capitalismo, sem domínio de quaisquer teses maiores da economia política clássica, em especial Ricardo e Smith. 



O MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA(Karl Marx e Friedrich Engels)






Criado como um panfleto de diretrizes para a Liga dos Comunistas, sediada em Bruxelas, trata-se do texto mais influente e famoso de Marx, um dos motivos pelos quais seu aparato teórico é frequentemente reduzido à prática socialista pura e simples, e também uma das razões de existirem tolices como culpá-lo por quaisquer ações tomadas por partidos comunistas ao longo dos século passado, em especial o da URSS. Até os dias de hoje, lê-se o Manifesto e é possível depreender necessidades e atualidades para o movimento operário, o tipo de coisa que poucos textos políticos conseguem. Algumas das ideias centrais do panfleto foram, de certa forma, revistas por Marx após algumas décadas, especialmente com o ocorrido na Comuna em 1871 e diante dos fracassos de algumas tentativas revolucionárias no continente. 
Independentemente disto, trata-se da porta de entrada para a maioria dos que querem estudar a obra marxiana, onde se introduzem ou se abordam de maneira didática conceitos como os da luta de classes, do materialismo histórico, da organização política, o socialismo como processo e outros fundamentos básicos que precisam ser entendidos por todos os que buscam compreender as teses do socialismo científico e do comunismo em si.
Dele também se extrai a épica manifestação final "Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!", que para além de um simples jargão denota o posicionamento internacionalista inerente e necessário à causa socialista.



O 18 BRUMÁRIO DE LUÍS BONAPARTE(Karl Marx)


O cenário político francês estava em ebulição constante desde a fatídica queda da Bastilha. Ao contrário do que os livros didáticos parecem demonstrar, aquele foi apenas o começo de um grande rebuliço nacional, que chegaria ao império de Napoleão, a tentativa de levante de 1848 e, ademais, ao que seria o segundo golpe de Estado da linhagem de Napoleão, através de seu sobrinho, Luís. Marx se utiliza desse último evento para discorrer acerca de aspectos políticos fundamentais inerentes aos conflitos que se desdobravam, sendo estes particularmente importantes à iniciativa operária, que aprendeu com alguns erros e teve um momento de insurreição mais bem sucedido exatos 20 anos depois, na Comuna.

Das obras políticas de Marx, essa é uma das, se não a mais interessante, contendo algumas de suas teses mais incisivas, como se vê pelo próprio capítulo inaugural da obra, em que o alemão nos diz: "Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos."



CONTRIBUIÇÃO PARA A CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA(Karl Marx)


Juntamente com os Grundrisse e o livreto Salário, Preço e Lucro, sem mencionar o já falado Miséria da Filosofia, este é um dos livros essenciais de Economia Política de Marx anteriores à publicação de O Capital. 

O prefácio dessa obra, talvez mais famoso do que ela própria, apresenta a importantíssima constatação marxiana sobre a maneira como a sociedade, sob as regras de seu tempo e espaço, limita o arbítrio individual e acaba levando à maioria o exercício de interações sociais que não dependem de sua vontade, por serem uma totalidade construída ao longo do tempo e que é maior do que o desejo pessoal ou as arbitrariedades de cada um. Relata também sobre a maneira como é justamente essa ação material, nascida no seio da sociedade, que molda o pensamento, tanto coletivo quanto individual, e não o contrário, um fundamental preceito materialista que permeia toda a crítica social e econômica em Marx.



O CAPITAL - VOLUME I(Karl Marx)


No ano de 1867, Marx publica o único volume de sua obra-prima que verá a luz do dia antes de sua morte. Ali, ele rompe em definitivo com as tradições prévias a seu tempo e lança as bases da mais influente escola do pensamento econômico do século XIX, a qual transformaria todo o entendimento sobre o capitalismo e moldaria parte substancial dos movimentos operários. Apesar da qualidade inflamante do Manifesto Comunista, é em O Capital que Marx eleva ao limite toda a percepção sobre o sistema vigente e destrincha todos os aspectos fundamentais do mesmo, dos mais abstratos aos mais palpáveis e acaba fundando a macroeconomia, por excelência. 

Apesar de ser uma leitura densa e, nos primeiros capítulos, assustadora, a linguagem em O Capital é didática e cheia de exemplos e referências, necessários à compreensão dos processos de pensamento profundos e amplos que se desenvolvem ao longo das centenas de páginas. 
Pode ser dito que, por mais que existam outras obras de quilate equivalente na bibliografia marxiana, O Capital apresenta o arcabouço mais completo pelo qual se preparou todo o terreno de sua teoria, um amálgama impecável do que há de mais revolucionário e inédito em Marx. 



A GUERRA CIVIL NA FRANÇA(Karl Marx)  



A despeito da escrita em curso de sua obra mais ambiciosa, Marx era incansável e continuava a publicar escritos de suma importância para além d'O Capital. Com o estouro de um dos eventos que mais mexeu com o pensador, A Guerra Civil na França foi feito com foco justamente na Comuna de Paris. Inicialmente trazido como uma mensagem ao conselho da Associação Internacional dos Trabalhadores, trata-se de um documento de inestimável reflexão sobre o que pode ser considerado o primeiro processo revolucionário bem-sucedido, além de retratar com esmiuçamento típico marxiano a indócil contrarrevolução burguesa que tirou do poder a classe trabalhadora. Quem gosta de história e documentação fidedigna dos fatos tem nesse tomo um registro essencial e aqueles que procuram entender o contexto político francês do século XIX, complexo e agitado, tem aqui um espécime, além de outros produzidos por Marx, como Luta de Classes Na França: 1848-1850, de perfeito rigor teórico.



CRÍTICA AO PROGRAMA DE GOTHA(Karl Marx)



Escrito oito anos antes de sua morte, o último grande livro escrito inteiramente por Marx viria a ser publicado em 1891 e, decerto, causou forte impressão no movimento operário e serviu de base teórica fundamental a eventos como a própria Revolução Russa. Mais do que o próprio notório Manifesto do Partido Comunista, Crítica ao Programa de Gotha, que faz referência ao programa de partido do Partido Operário Alemão Unificado, de conjuntura lassaliana e ao qual Marx e Engels tinham imensas ressalvas. 

Conceitos fundamentais sobre Estado e política em Marx encontram uma de suas formas mais bem cristalizadas neste livro, como a distribuição de renda e bens no socialismo, a chamada ditadura do proletariado, a transformação social e política do capitalismo rumo ao socialismo, o papel do Estado e da sociedade, entre outras pautas que interessam sobremaneira aos que buscam respostas para as perguntas mais corriqueiras sobre o pensamento marxiano. Através deste livro, é possível desmistificar muitos dos absurdos diuturnamente propagados pela propaganda anticomunista acerca de preceitos supostamente marxianos quanto ao Estado e a revolução.
 
Considerações sobre o estudo da obra marxiana, vulgo Guia de Estudos


As obras acima não representam, como já dito, a totalidade, ou sequer perto disso do que foi produzido por Marx ou por ele e Engels, tanto juntos quanto separados. Representa uma parte essencial de leitura de sua obra, livros com os quais o leitor já pode se habituar às suas teses e conhecer a maior parte do que foi produzido de fundamental e inovador nas mais diferentes áreas.

Para além disso, este artigo tem como iniciativa uma espécie de passo-a-passo para estudar a referida bibliografia, um guia que é pessoal e ao mesmo tempo objetivo, com as impressões de quem também precisa estudar muito ainda e conhece os percalços de um amplo, porém satisfatório caminho pedagógico.

Incluirei aqui neste pequeno guia não apenas certos livros que não foram diretamente explanados acima, mas também alguns que não foram escritos por Marx e sim por Engels. Quanto a isso, cabe o parênteses: apesar de muito amigos e bastante similares em suas proposições, Marx e Engels são pensadores distintos e um não é mera extensão do outro. É tolo e perigoso, até, ficar tomando os dois teóricos como um híbrido puro e simples. Não cabe a mim aqui dizer se um estava mais correto que o outro ou, como alguns o fazem, que Engels teria amadurecido menos do que Marx dentro das proposições do materialismo histórico ou do desprendimento das filosofias que Marx tentou superar, como a dialética hegeliana e o materialismo feuerbachiano, além da teoria do valor-trabalho de Ricardo, etc. 

Esse tipo de debate é interessante e pode ser estendido num segundo momento, mas é impróprio ao momento. 


Obras Iniciais e Intermediárias - Os princípios fundamentais e o teor mais acessível



- O Manifesto Comunista(Marx e Engels): 

não há consenso sobre a lista de livros que deve servir de ponto de partida em Marx, mas esta obra é amplamente considerada como um início seguro aos estudos. Por apresentar algumas das principais propostas de Marx e Engels e por ser um dos trabalhos mais facilmente palatáveis por quem ainda não é iniciado nem em seus escritos ou nos diferentes pensadores que eles frequentemente referenciam, certamente se trata da obra que melhor introduzirá o leitor à perspectiva do socialismo científico, sem grandes sustos ou traumas de principiante. 

- Karl Marx - A História de Sua Vida(Franz Mehring)
Há muitas biografias de Marx e poderia citar diversas aqui que são boas e muitas outras que são péssimas e desonestas. A de Franz Mehring, escrita em 1918, é uma das mais completas e factuais, escrutinando a vida do pensador alemão de maneira sólida e perspicaz, atravessando tanto os aspectos mais ligados à sua trajetória teórica e política como também os detalhes de sua vida pessoal que ajudaram a moldar sua história. Muitos poderiam se perguntar o que isso tem de tão valioso no estudo de Marx. Vos digo que nada melhor do que uma boa biografia para compreender o desenvolvimento de um pensamento e de uma carreira, já que o contexto social e histórico, frequentemente aludidos pelo próprio Marx, são fundamentais à concepção de qualquer trabalho. Nota adicional: a biografia feita por Lenin também é excelente e, em terras brasileiras, há o Marx: Vida e Obra de Leandro Konder, importantíssimo filósofo carioca.

- Prefácio de Contribuição Para a Crítica da Economia Política(Marx):

Um dos principais sumários marxianos a respeito do materialismo histórico, com algumas passagens extremamente importantes, como "Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina a sua consciência"


- Teses Sobre Feuerbach(Marx): 
Talvez não seja exatamente simples e pode assustar no começo, mas felizmente é curto e, por isso, dá pra ler e reler diversas vezes, a cada vez tentando absorver melhor o que foi dito por Marx neste trabalho que é, sem sombra de dúvidas, necessário. A décima primeira tese, que discute como os filósofos têm como real ofício transformar o mundo e não apenas contemplá-lo é uma das conjecturas marxianas que melhor nos mostra o quanto o pensador alemão estava à frente de seu tempo e era genial.

-Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico(Friedrich Engels): 

Escrito e publicado já em 1880, o pequeno mas essencial tomo de Engels é prova de que certos estudos basilares são concebidos tardiamente, pois são a síntese de toda uma trajetória. Para quem busca compreender não apenas alguns pontos fundamentais do socialismo mas também a forma como ele partiu de sua veia mais utopista e chegou à sua abordagem científica, temos aqui um compêndio didático e muito bem escrito, interessante e bom de se ler.

- As 3 Fontes e 3 Partes Constitutivas do Marxismo(Vladmir Lenin): 

A despeito de ressalvas que podem ser feitas a essa obra, considerando que a teoria social de Marx é muito mais do que se apresenta nessas chamadas 3 fontes, a obra de Lenin busca pelo menos traçar um caminho inicial que dê ao leitor boa base de entendimento sobre algumas das principais influências de Marx e Engels na consolidação de suas teses. Como se sabe, ser iniciante pressupõe que você ainda não tem o arcabouço teórico para se aprofundar no assunto e, portanto, as limitações dessa obra só se revelerão àqueles que já tem experiência com Marx.



Para se aprofundar nos temas


- O 18 Brumário de Luís Bonaparte(Marx): 

Essencial e absolutamente esmerada, essa obra contém, como já mencionei anteriormente, algumas das passagens mais famosas e bem escritas de Marx. É um retrato político fiel do contexto retratado e também é uma aula de materalismo histórico. Não é também enorme, o que facilita para aqueles que ainda estão na ala intermediária dos estudos ou saindo das principais obras iniciais e não querem encarar os calhamaços.

- Miséria da Filosofia(Marx): 

Contendo um texto rico em referências, grandes interpretações econômicas e comentários irônicos muito bem pontuados e engraçados, é um bom início para os que querem se inteirar mais dos aspectos de economia política em Marx, além de trazer uma das mais importantes sínteses da cisão entre o socialismo marxiano e o socialismo anarquista, ou anarquismo clássico.

- O Estado e a Revolução(Vladmir Lenin): 
Das interpretações marxistas sobre o Estado, esse famoso texto de Lenin é talvez a mais famosa e uma das melhores. Por não ser extremamente complicado e por recobrar aspectos fundamentais da teoria marxiana-engeliana acerca do papel de classe do Estado, bem como aspectos relacionados à revolução socialista, é uma obra de valor incontestável e até uma boa introdução ao leninismo.

 - A Ideologia Alemã(Marx e Engels): 
Muitos colocariam este entre os iniciais pois, de fato, trata-se de uma excelente porta de entrada ao socialismo científico. No entanto, o livro como um todo, para além do importantíssimo primeiro capítulo, dedicado ao materialismo feuerbachiano, é denso, grande e, por vezes, monótono. Portanto, há aqui uma ambiguidade: recomendo o Capítulo I aos iniciantes e o livro todo aos iniciados. Aliás, muitas edições por aí só têm o primeiro capítulo, daí a diferença, quando alguém vai procurá-los nas livrarias, e se depara com um calhamaço ao lado de um livreto.

- A Guerra Civil na França(Marx): 

Dada a maturidade de Marx ao escrever esta obra e a suma importância do evento que ela retrata, é um exemplar obrigatório em qualquer lista de estudos marxianos. Não é dos maiores livros(a edição da editora Boitempo tem 272 páginas) e nem dos mais difíceis, mas por abordar assuntos mais específicos, é mais indicado ler depois de habituado à obra do alemão.

- Salário, Preço e Lucro(Marx): 
Antes de iniciar a leitura do primeiro volume de O Capital, este pequeno livro pode ser de extremo valor, dado que introduz muito do que será dito no primeiro capítulo deste último e, assim, habituará o leitor às abstrações mais econômicas, que podem assustar, no começo.

- Anti-Dühring(Engels): 
Esta obra demonstra bem duas coisas sobre Engels - que ele é um pensador independente e que não vivia exatamente à sombra de Marx e que sua obra complementa a de Marx em muitos aspectos. Este livro foi escrito no final dos anos de 1870 e servia de reprimenda às ideias de Eugen Dühring, um professor que se tornou politicamente influente entre os social democratas e cujas ideias Marx e Engels consideravam perigosas ao movimento operário. Foi assim que, com total bênção de Marx e esporádicas contribuições do mesmo, a obra foi publicada em 1878 e surtiu grande efeito na Alemanha. Trata-se de um trabalho bom de ler e fortemente indicado a quem queira se aprofundar na análise sobre a economia política, a filosofia marxiana e engelsiana e sobre o socialismo em si - tanto que Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico foi escrito com base em manuscritos de Anti-Dühring.

- A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado(Engels): 
Talvez a publicação mais famosa de Engels em trabalho solo, este livro é uma pérola historiográfica que fala sobre a pré-história, os primeiros estágios da civilização histórica e, com isso, traça paralelos com nossa história contemporânea e a formação das sociedades e de aparatos fundamentais das mesmas.

- O Capital(Marx): 

Por fim, a obra-prima de Marx, seu maior trunfo literário e o livro de economia política mais importante da história. Aqui, se levarmos em consideração os 4 tomos(o último geralmente é chamado apenas de Teorias da Mais-Valia), encontra-se cristalizado o pensamento marxiano mais maduro, onde sua profunda compreensão dos mecanismos do capital se acham em seu estágio mais avançado de exposição e elucidação. 
Não é que O Capital deva ser o último dos livros de Marx ou dos marxistas a ser lido. Nem que esta lista seja absoluta, pois deixei de citar outras tantas literaturas importantíssimas. Mas é mais impactante e mais palatável absorver o conteúdo desta obra depois de já ter passado por um tanto de Marx, de Engels, até de Lenin, para que os conceitos e as passagens se tornem mais fixos na mente e sejam melhor aproveitados. Porém, não se engane: não somente este, mas principalmente este livro, dentre os citados aqui, precisará ser lido com calma e relido muitas outras vezes. Anotar e usar livros de apoio pode ser fundamental, até imprescindível. 
Em termos de literatura acessória, eu indicaria, principalmente, duas: "Gênese e estrutura de "O Capital" de Karl Marx", de Roman Rosdolsky e Capital: Essência e Aparência, de Reinaldo Carcanholo. Há ainda um compêndio escrito pelo anarquista italiano Carlo Cafiero, que foi, inclusive, elogiado por Marx em pessoa. Marx não era arrogante, mas tampouco era de ser elogioso demais, o que fala por si só.

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No próximo e último(provavelmente) artigo da homenagem a Marx, trarei um texto sobre o impacto do legado marxiano, suas consequências políticas e a atualidade do pensamento de Marx. Até lá!

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